domingo, 11 de março de 2012

Alice e Clarice: a maravilhosa transformação de duas lagartas em preciosas borboletas


Alice e Clarice: a maravilhosa transformação de duas lagartas em preciosas borboletas – dois casos semelhantes de busca de identidade e protagonismo juvenil

Alice no País das Maravilhas

Título original: (Alice in Wonderland)

Lançamento: 2010 (EUA)

Direção: Tim Burton

Atores: Mia Wasikowska, Johnny Depp, Helena Bonham Carter, Anne Hathaway.

Duração: 108 min

Preciosa

Título original: (Precious: Based on the Novel Push by Sapphire)

Lançamento: 2009 (EUA)

Direção: Lee Daniels

Atores: Gabourey Sidibe, Mo'Nique, Rodney Jackson, Paula Patton.

Duração: 110 min

Gênero: Drama

Faz alguns anos que tenho passado pelo desafio de entender a linguagem da adolescência e transformar isso em algo que possa fazer sentido em suas “trágicas” vidas. Compreendam, quando digo “trágica”, entre aspas, quero dizer que até agora, em minhas mais de quatro décadas de existência, jamais passei por conflitos tão “trágicos”, sem quase nenhum recurso, quanto na época da adolescência. Se eu ainda passo por conflitos? Sim, é claro. Mas agora tenho recursos psíquicos e maturidade suficientes para, pelo menos, transitar por eles e encontrar algum sentido. Não é a toa, portanto, que a adolescência é uma espécie de “limbo” na transição entre a fase infantil e a fase adulta. Mas é também nessa transição em que o mundo real e o mundo fantástico podem se convergir e gerar uma força que geralmente o adulto esqueceu que possui faz tempo: a força de ser protagonista de sua própria história.

É eu sei, a maioria dos adultos se vê como protagonista, dono de seu nariz, crente em suas potências e poderes, resolvido e desconfiado quando alguém tenta aconselhá-lo. Começou de um jeito, mas foi se transformando em um protagonismo que perdeu suas cores e companheiros. Geralmente é monocromático, egocêntrico, de super-herói, personalista até o último fio de cabelo. O protagonismo adulto não poucas vezes é cheio de neuroses, paranóias e assombros. Quando conquista algo, faz festa sozinho, mesmo quando cheio de pessoas a volta. Pela auto-suficiência se tornou um ator sem coadjuvantes, sem os quais jamais poderia se protagonizar – paradoxal.

Os adolescentes, talvez pelas situações a cada dia ambíguas, não conta ainda com essa auto-suficiência (apesar do sentimento de onipotência) e desconhece as grandes conquistas por conta própria. Talvez também por isso o adolescente descubra, por um processo belíssimo de transformação, que devagar pode ser protagonista de sua própria história, ser ator de seu destino e, diferente de muitos adultos, contar com os coadjuvantes. Com um pouco mais de tempo, pode até ser o autor do seu próprio livro da vida em páginas escritas por ele.

Para ilustrar aos adolescentes (também aos adultos) tal capacidade de se protagonizar, é que recomendo dois filmes aparentemente diferentes um do outro. Na verdade, a diferença é muito mais por conta do contexto do que pela ação protagonizante das personagens. Um é Alice no País das Maravilhas, versão de Tim Burton, que dispensa elogios na forma como cria a sua própria estética; o outro é Preciosa, que nos esbofeteia com diretos de realidade dura sem dó. As personagens se descobrem protagonistas de tal forma semelhante, que gosto de dizer que não é por acaso que uma se chame Alice e a outra Clarice (Claireece); que a figura simbólica nos dois filmes seja uma borboleta, símbolo clássico da transformação (em Precisosa só aparece na ilustração de capa do DVD).

O mundo de Alice é fantástico, colorido e cheio de personagens imaginários, mas não menos conflituoso e amedrontador quanto o de Clarice Precious. Tanto uma quanto a outra precisam enfrentar seus medos e a morte e, ao fazerem isso, encontrar sua identidade, a capacidade de resolver seus próprios conflitos, sem que outras pessoas façam isso por elas. Pelas regras da vida, os outros podem apenas ajudar, mas não podem estar no lugar delas. No caso de Alice, tão somente ela pode “matar”, no caso de Clarice, tão somente ela pode se libertar.

Paro as comparações explícitas por aqui, com o receio de cometer o erro de forçar as personagens a se confundirem. Mesmo porque utilizo os filmes para faixas etárias diferentes (Alice para o ciclo 2 do fundamental e Preciosa para o ensino médio). Para a rede de educadores utilizo os dois filmes e suas possibilidades para o trabalho com adolescentes.

Começando com Alice, podemos ver que logo de início ela encontra com uma lagarta azul (no ombro de seu noivo e depois quando entra no buraco), personagem que vai servir tanto como uma espécie de consciência de sua identidade como símbolo de sua transformação (uma borboleta). Afinal, Alice é uma menina que precisa se tornar uma adulta, mas foge dessa responsabilidade e da crítica dos adultos em sua volta. O buraco é o espaço de sua fuga (símbolo de intimidade e esconderijo existencial) e onde encontra um mundo de fantasia. Alice não pode perder tempo (representado pelo apresado coelho branco), pois o tempo corre e sua idade avança.

Não é porque o mundo que encontra é fantástico que Alice deixa de ser provada. Nesse lugar ela se depara com os mesmos desafios que exigem dela uma postura adulta diante da vida. Alice precisa enfrentar, dominar e, se preciso, matar seus próprios medos (representado no final pelo jaguadarte – um terrível dragão), para só então acreditar e si mesma e descobrir a sua identidade de verdadeira Alice.

O mundo adulto e falso do qual Alice tem que manter distância é representado pelos “cabeças-grandes” e pelas partes falsas do corpo que cada um usa. Esse é o jeito brincalhão do filme com o modo como os adolescentes enxergam o mundo adulto. Aliás, um mundo em geral repressor, que o tempo todo resolve suas queixas com os adolescentes mandando “cortar a cabeça”.

Um deles, um adulto que se sai bem com Alice, é o “chapeleiro”, justamente por que é um “deslocado” da seriedade e atitude sisuda dos adultos. Ele, como os animais, dão a Alice a oportunidade de ser uma protagonista de sua história.

No fim, diante do desafio derradeiro, Alice deve jogar o jogo de sua vida, representado pelas cartas de um baralho e peças de xadrez em um tabuleiro para uma batalha de vida e morte.

Depois que Alice passou pelo processo de crescimento dentro do mundo de fantasia, enfrenta e resolve todos os seus medos e preocupações no mundo real. Antes com dúvida a respeito de si mesma diante dos adultos, agora acha coragem para dizer tudo o que pensa, pois sabe quem é; sinal de autenticidade que todo adolescente encontra para a entrada na vida adulta.

Apesar dos contextos serem diferentes, a história de Preciosa tem a mesma rota que a história de Alice: tanto Alice quanto Clarice saem do mundo real para ir ao mundo imaginário para depois voltar ao mundo real. O “buraco de Alice” de Preciosa é sua fuga para o mundo da fantasia, do devaneio, em que sonha ser atriz famosa e protagonista. Mas, ao contrário, é uma menina aparentemente destinada à uma vida trágica: negra, analfabeta, abusada sexualmente pelo pai, obesa, violentada pela mãe, sofrendo bullying dos colegas da escola, grávida em plena adolescência, baixa autoestima e soropositiva – na década de 80 não havia nenhum tratamento para a AIDS e receber a notícia de soropositivo era o mesmo que receber uma sentença de morte. O que faz com que o momento mais tocante do filme é a relação que Preciosa faz do amor com o pior que existe na vida, um amor que ela confunde com a violência.

Cedo Clarice percebe que não conseguirá se protagonizar, tornar-se dona de sua história se continuar analfabeta. Semelhante ao filme Escritores da Liberdade, Preciosa vagarosamente vai desvelando a mágica da escrita: escrever é libertar-se, é encontrar-se numa identificação que só quem conta a sua própria história consegue. Com essa chave em mãos, ajudada por suas colegas (coadjuvantes) e por sua professora, que se envolve mais do que um educador faria, ela conquista cada espaço, cada território social e existencial que lhe fora negado pela família, escola e sociedade.

“Cada um ensina um” (o trocadilho se perde na tradução em português – each one teach one) é o nome da escola alternativa onde Clarice se transfere e uma clara “cutucada” na educação tradicional que não sabe lidar com adolescentes em situação tão vulnerável como a de Preciosa.

Interessante notar como muitas frases de Preciosa se encaixam perfeitamente na boca de qualquer adolescente de sua idade (cerca de 16 anos): “eu gostaria de ter um namorado com pele clara e cabelos fabulosos... eu queria ser capa de revista”; “semana passada o senhor Raimi me pediu que escrevesse como eu queria ser: eu disse: - cabelos longos, pele clara e magra.”

Enfim é um filme para se trabalhar uma gama grande de temas relacionados ao adolescente: racismo, educação inclusiva, abuso sexual, violência doméstica, bullying, gravidez, autoestima, qualidade de vida, AIDS, homossexualidade (a professora é identificada como lésbica e única acolhedora de Preciosa), ditadura da moda e beleza, etc.

Alice e Clarice são expressões do cinema para a mesma história: adolescentes que devem passar por um processo de transformação que lhes permita se identificarem como protagonistas, em pleno desempenho do papel principal de seus próprios roteiros.

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