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O soldado que virou bomba – Guerra ao Terror e a Síndrome de Burnout
Guerra ao Terror
Título original: (The Hurt Locker)
Lançamento: 2009 (EUA)
Direção: Kathryn Bigelow
Atores: Jeremy Renner, Anthony Mackie, Brian Geraghty, Guy Pearce.
Duração: 131 min
Gênero: Drama
Sinopse:
JT Sanborn (Anthony Mackie), Brian Geraghty (Owen Eldridge) e Matt Thompson (Guy Pearce) integram o esquadrão anti-bombas do exército americano, em ação em pleno Iraque. Eles trabalham na destruição de um explosivo, fazendo com que seja detonado sem que atinja alguém. Entretanto, um erro faz com que o artefato exploda e mate Thompson. Em seu lugar é enviado o sargento William James (Jeremy Renner), que possui grande sangue frio em ação. Isto gera alguns desentendimentos com Sanborn, que o considera irresponsável. Apesar disto, o trio segue na ativa, tendo consciência de que cada dia concluído de trabalho é um dia a mais de vida.
Fiquei sabendo pela primeira vez de “Guerra ao Terror” de forma despretenciosa: estava sendo oferecido em “paperview” e não constava ainda na lista de indicações para o Oscar. Não foi nem mesmo lançado no circuito de cinemas. Deixei de lado e fui ver “Avatar”. Resultado: assisti ao Oscar 2010 sem saber bem porque o filme ganhou estatuetas tão importantes (9 indicações e 6 ganhas, sendo filme, direção e roteiro entre as principais).
Só depois, com quase um ano de atraso, assisti ao filme. Assisti com o “peixe” que me venderam, ou seja, de que se tratava de um dos melhores filmes de suspense dos últimos tempos. Mas é só isso? Para mim, nem isso. Para quem se acostumou a aos clichês de sustos do cinema, um filme como esse não causa mais quase nenhum impacto em minha já calejada alma. Não vi muitas novidades em termos de suspense, e não foi um filme exatamente inédito no que diz respeito à forma de abordar as sandices das guerras. Não faltou esforço para ver algo a mais, pelo menos na primeira vez. Mas, como sou teimoso e assisto mais que uma vez, na segunda rodada peguei-me dizendo para mim mesmo o quanto eu fui cego. É isso que dá comprar o tal “peixe” vendido pelos “especialistas”, pela propaganda do trailer e pelas sinopses cruas.
Na verdade, o que aconteceu foi um tanto quanto inaudito. Estava dando um curso para professores(as) da rede estadual sobre a Síndrome de Burnout, que tanto acomete os profissionais da educação. Como gosto muito de ilustrar alguns conceitos com filmes, tentei me lembrar que filme se adequaria ao tema. Não sei porque, muitas vezes isso me espanta e não foi a primeira vez que isso aconteceu, mas as imagens que vieram em minha mente foram justamente do trailer desse filme, que eu ainda não tinha assistido. Fiquei fascinado como “Guerra ao terror” se encaixa perfeitamente para explicar a Síndrome de Burnout.
Bem, então faço um desafio: assista ao filme e verifique as característica dessa síndrome que indiquei abaixo:
· Burnout significa, numa tradução literal, “queimar para fora”, ou, numa tradução livre, relacionada ao filme, pode ser “explodir”, “queimar totalmente”.
· A Síndrome de Burnout é um distúrbio psíquico relacionado a um estado agravado de ansiedade e de caráter depressivo, precedido de esgotamento físico e mental intenso, definido por Herbert J. Freudenberger como "(…) um estado de esgotamento físico e mental cuja causa está intimamente ligada à vida profissional".
· O desejo de ser o melhor e sempre demonstrar alto grau de desempenho é outra fase importante da síndrome: o portador de Burnout mede a auto-estima pela capacidade de realização e sucesso profissional. O que tem início com satisfação e prazer, termina quando esse desempenho não é reconhecido. Nesse estágio, necessidade de se afirmar, o desejo de realização profissional se transforma em obstinação e compulsão.
· São doze os estágios de Burnout:
1. Necessidade de se afirmar;
2. Dedicação intensificada - com predominância da necessidade de fazer tudo sozinho;
3. Descaso com as necessidades pessoais - comer, dormir, sair com os amigos começam a perder o sentido;
4. Recalque de conflitos - o portador percebe que algo não vai bem, mas não enfrenta o problema. É quando ocorrem as manifestações físicas;
5. Reinterpretação dos valores - isolamento, fuga dos conflitos. O que antes tinha valor sofre desvalorização: lazer, casa, amigos, e a única medida da auto-estima é o trabalho;
6. Negação de problemas - nessa fase os outros são completamente desvalorizados e tidos como incapazes. Os contatos sociais são repelidos, cinismo e agressão são os sinais mais evidentes;
7. Recolhimento;
8. Mudanças evidentes de comportamento;
9. Despersonalização;
10. Vazio interior;
11. Depressão - marcas de indiferença, desesperança, exaustão. A vida perde o sentido;
12. E, finalmente, a síndrome do esgotamento profissional propriamente dita, que corresponde ao colapso físico e mental. Esse estágio é considerado de emergência e a ajuda médica e psicológica uma urgência.
Sinceramente não tenho nenhuma ideia se a diretora ou o roteirista sabiam dessa aproximação tão evidente com a síndrome. Para completar, fiquei ainda mais impressionado com o título original do filme: “The Hurt Locker”, algo como “o aprisionador de mágoas”. Em resumo, um soldado desarma bombas para que não explodam, mas ele mesmo não pode desarmar a bomba de seu coração, que está prestes a explodir. Em tempo, as verdadeiras armas, as mortais armas, são as pessoas, não os artefatos.
Alice e Clarice: a maravilhosa transformação de duas lagartas em preciosas borboletas – dois casos semelhantes de busca de identidade e protagonismo juvenil
Alice no País das Maravilhas
Título original: (Alice in Wonderland)
Lançamento: 2010 (EUA)
Direção: Tim Burton
Atores: Mia Wasikowska, Johnny Depp, Helena Bonham Carter, Anne Hathaway.
Duração: 108 min
Preciosa
Título original: (Precious: Based on the Novel Push by Sapphire)
Lançamento: 2009 (EUA)
Direção: Lee Daniels
Atores: Gabourey Sidibe, Mo'Nique, Rodney Jackson, Paula Patton.
Duração: 110 min
Gênero: Drama
Faz alguns anos que tenho passado pelo desafio de entender a linguagem da adolescência e transformar isso em algo que possa fazer sentido em suas “trágicas” vidas. Compreendam, quando digo “trágica”, entre aspas, quero dizer que até agora, em minhas mais de quatro décadas de existência, jamais passei por conflitos tão “trágicos”, sem quase nenhum recurso, quanto na época da adolescência. Se eu ainda passo por conflitos? Sim, é claro. Mas agora tenho recursos psíquicos e maturidade suficientes para, pelo menos, transitar por eles e encontrar algum sentido. Não é a toa, portanto, que a adolescência é uma espécie de “limbo” na transição entre a fase infantil e a fase adulta. Mas é também nessa transição em que o mundo real e o mundo fantástico podem se convergir e gerar uma força que geralmente o adulto esqueceu que possui faz tempo: a força de ser protagonista de sua própria história.
É eu sei, a maioria dos adultos se vê como protagonista, dono de seu nariz, crente em suas potências e poderes, resolvido e desconfiado quando alguém tenta aconselhá-lo. Começou de um jeito, mas foi se transformando em um protagonismo que perdeu suas cores e companheiros. Geralmente é monocromático, egocêntrico, de super-herói, personalista até o último fio de cabelo. O protagonismo adulto não poucas vezes é cheio de neuroses, paranóias e assombros. Quando conquista algo, faz festa sozinho, mesmo quando cheio de pessoas a volta. Pela auto-suficiência se tornou um ator sem coadjuvantes, sem os quais jamais poderia se protagonizar – paradoxal.
Os adolescentes, talvez pelas situações a cada dia ambíguas, não conta ainda com essa auto-suficiência (apesar do sentimento de onipotência) e desconhece as grandes conquistas por conta própria. Talvez também por isso o adolescente descubra, por um processo belíssimo de transformação, que devagar pode ser protagonista de sua própria história, ser ator de seu destino e, diferente de muitos adultos, contar com os coadjuvantes. Com um pouco mais de tempo, pode até ser o autor do seu próprio livro da vida em páginas escritas por ele.
Para ilustrar aos adolescentes (também aos adultos) tal capacidade de se protagonizar, é que recomendo dois filmes aparentemente diferentes um do outro. Na verdade, a diferença é muito mais por conta do contexto do que pela ação protagonizante das personagens. Um é Alice no País das Maravilhas, versão de Tim Burton, que dispensa elogios na forma como cria a sua própria estética; o outro é Preciosa, que nos esbofeteia com diretos de realidade dura sem dó. As personagens se descobrem protagonistas de tal forma semelhante, que gosto de dizer que não é por acaso que uma se chame Alice e a outra Clarice (Claireece); que a figura simbólica nos dois filmes seja uma borboleta, símbolo clássico da transformação (em Precisosa só aparece na ilustração de capa do DVD).
O mundo de Alice é fantástico, colorido e cheio de personagens imaginários, mas não menos conflituoso e amedrontador quanto o de Clarice Precious. Tanto uma quanto a outra precisam enfrentar seus medos e a morte e, ao fazerem isso, encontrar sua identidade, a capacidade de resolver seus próprios conflitos, sem que outras pessoas façam isso por elas. Pelas regras da vida, os outros podem apenas ajudar, mas não podem estar no lugar delas. No caso de Alice, tão somente ela pode “matar”, no caso de Clarice, tão somente ela pode se libertar.
Paro as comparações explícitas por aqui, com o receio de cometer o erro de forçar as personagens a se confundirem. Mesmo porque utilizo os filmes para faixas etárias diferentes (Alice para o ciclo 2 do fundamental e Preciosa para o ensino médio). Para a rede de educadores utilizo os dois filmes e suas possibilidades para o trabalho com adolescentes.
Começando com Alice, podemos ver que logo de início ela encontra com uma lagarta azul (no ombro de seu noivo e depois quando entra no buraco), personagem que vai servir tanto como uma espécie de consciência de sua identidade como símbolo de sua transformação (uma borboleta). Afinal, Alice é uma menina que precisa se tornar uma adulta, mas foge dessa responsabilidade e da crítica dos adultos em sua volta. O buraco é o espaço de sua fuga (símbolo de intimidade e esconderijo existencial) e onde encontra um mundo de fantasia. Alice não pode perder tempo (representado pelo apresado coelho branco), pois o tempo corre e sua idade avança.
Não é porque o mundo que encontra é fantástico que Alice deixa de ser provada. Nesse lugar ela se depara com os mesmos desafios que exigem dela uma postura adulta diante da vida. Alice precisa enfrentar, dominar e, se preciso, matar seus próprios medos (representado no final pelo jaguadarte – um terrível dragão), para só então acreditar e si mesma e descobrir a sua identidade de verdadeira Alice.
O mundo adulto e falso do qual Alice tem que manter distância é representado pelos “cabeças-grandes” e pelas partes falsas do corpo que cada um usa. Esse é o jeito brincalhão do filme com o modo como os adolescentes enxergam o mundo adulto. Aliás, um mundo em geral repressor, que o tempo todo resolve suas queixas com os adolescentes mandando “cortar a cabeça”.
Um deles, um adulto que se sai bem com Alice, é o “chapeleiro”, justamente por que é um “deslocado” da seriedade e atitude sisuda dos adultos. Ele, como os animais, dão a Alice a oportunidade de ser uma protagonista de sua história.
No fim, diante do desafio derradeiro, Alice deve jogar o jogo de sua vida, representado pelas cartas de um baralho e peças de xadrez em um tabuleiro para uma batalha de vida e morte.
Depois que Alice passou pelo processo de crescimento dentro do mundo de fantasia, enfrenta e resolve todos os seus medos e preocupações no mundo real. Antes com dúvida a respeito de si mesma diante dos adultos, agora acha coragem para dizer tudo o que pensa, pois sabe quem é; sinal de autenticidade que todo adolescente encontra para a entrada na vida adulta.
Apesar dos contextos serem diferentes, a história de Preciosa tem a mesma rota que a história de Alice: tanto Alice quanto Clarice saem do mundo real para ir ao mundo imaginário para depois voltar ao mundo real. O “buraco de Alice” de Preciosa é sua fuga para o mundo da fantasia, do devaneio, em que sonha ser atriz famosa e protagonista. Mas, ao contrário, é uma menina aparentemente destinada à uma vida trágica: negra, analfabeta, abusada sexualmente pelo pai, obesa, violentada pela mãe, sofrendo bullying dos colegas da escola, grávida em plena adolescência, baixa autoestima e soropositiva – na década de 80 não havia nenhum tratamento para a AIDS e receber a notícia de soropositivo era o mesmo que receber uma sentença de morte. O que faz com que o momento mais tocante do filme é a relação que Preciosa faz do amor com o pior que existe na vida, um amor que ela confunde com a violência.
Cedo Clarice percebe que não conseguirá se protagonizar, tornar-se dona de sua história se continuar analfabeta. Semelhante ao filme Escritores da Liberdade, Preciosa vagarosamente vai desvelando a mágica da escrita: escrever é libertar-se, é encontrar-se numa identificação que só quem conta a sua própria história consegue. Com essa chave em mãos, ajudada por suas colegas (coadjuvantes) e por sua professora, que se envolve mais do que um educador faria, ela conquista cada espaço, cada território social e existencial que lhe fora negado pela família, escola e sociedade.
“Cada um ensina um” (o trocadilho se perde na tradução em português – each one teach one) é o nome da escola alternativa onde Clarice se transfere e uma clara “cutucada” na educação tradicional que não sabe lidar com adolescentes em situação tão vulnerável como a de Preciosa.
Interessante notar como muitas frases de Preciosa se encaixam perfeitamente na boca de qualquer adolescente de sua idade (cerca de 16 anos): “eu gostaria de ter um namorado com pele clara e cabelos fabulosos... eu queria ser capa de revista”; “semana passada o senhor Raimi me pediu que escrevesse como eu queria ser: eu disse: - cabelos longos, pele clara e magra.”
Enfim é um filme para se trabalhar uma gama grande de temas relacionados ao adolescente: racismo, educação inclusiva, abuso sexual, violência doméstica, bullying, gravidez, autoestima, qualidade de vida, AIDS, homossexualidade (a professora é identificada como lésbica e única acolhedora de Preciosa), ditadura da moda e beleza, etc.
Alice e Clarice são expressões do cinema para a mesma história: adolescentes que devem passar por um processo de transformação que lhes permita se identificarem como protagonistas, em pleno desempenho do papel principal de seus próprios roteiros.